A Romantização do Estupro Como Arquétipo na Mitologia

escultura de  Bernini o rapto de prosperina

Nos tempos antigos, o rapto de donzelas era uma prática comum na Grécia. Um homem que quisesse uma esposa simplesmente tinha que sequestrar aleatoriamente uma garota da casa de seus pais e isso significava que eles eram “casados” aos olhos da sociedade. É por isso que  dizem que não há nada de errado no mito de Perséfone, que simplesmente contava a história dessa antiga prática de um ponto de vista divino mitológico.

Naqueles tempos as mulheres comuns não tinham liberdade e tinham poucos direitos; ser sequestrada e estuprada e ser considerada “noiva” e depois “esposa” de seus estupradores não era exatamente incomum. Simplesmente, não era considerado grande coisa, era "tradição". Deusas não eram exceção. Quase todas as deusas casadas do panteão grego tornaram-se esposas de seu marido por estupro, Hera, Thetis, Metis, Gaia, Helen, apenas para citar algumas. 

As histórias mais antigas são parábolas para vida e cultura da antiguidade. Os deuses eram em maioria estupradores e era normal, porque era normal na sociedade da época. Era normal uma mulher ser estuprada e então obrigada à casar com seu estuprador para não "sujar"  o nome da família por exemplo. Se um homem queria uma mulher, tudo que era necessário era tomá-la a força. Romances consensuais são contos modernos. Mas a romanização do estupro é muito, muito antiga. Talvez sustentar esse arquétipo é como a sociedade se vê tão enraizada em comportamentos automáticos onde a mulher moderna quando vítima de estupro é quem sente vergonha, é quem tem que provar, é quem é acuada. -Veja, antes elas eram obrigadas a se casar com seus agressores, eram vítimas mas nem isso eram consideradas, eram consideradas uma vergonha - e era esperado delas resignar-se a serem estupradas a vida inteira para se "livrarem" dessa vergonha e não envergonharem ainda mais a família.

Um arquétipo é tido como uma imagem simbólica de um comportamento por exemplo, esse molde de comportamento é então passado de geração a geração através de seus mitos e símbolos e se expressão na repetição de seu comportamento.

Então nos perguntamos  hoje como vítimas demoram tanto tempo pra denunciar, em contrapartida vemos a reação da sociedade à denuncia cujo uma grande proporção reage acuando mais a vítima do que o agressor.

 Muitas dessas histórias horríveis se dão na infância sendo processadas pelo consciente apenas na vida adulta. O inconsciente faz de tudo para sustentar o necessário à sobrevivência e lidar com o trauma nem sempre é visto por esse sistema como seguro.  Assim as lembranças dolorosas não podem ser acessadas conscientemente, protegendo o indivíduo de constantemente ter que reviver a dor emocional destes eventos. Mas as cicatrizes não vão embora, é como se escondessem  as raízes  machucadas mas ainda colhem-se os  frutos estragados sem saber porquê. Estas memórias suprimidas podem causar uma série de problemas psicológicos graves, desde ansiedade e depressão a desordens de estresse pós-traumático ou dissociativas. Quando essas  vítimas  buscam a terapia para resolver problemas como esses, muitas vezes ao longo do processo descobrem que a raiz dessas desordens estão nos traumas da infância que a mente bloqueou até o momento da lembrança. 

Pais, padrastos, tios são apenas um exemplo, são figuras de autoridade que se estendem para professores, chefes e assim por diante. São naturalmente vistos como mais fortes, superiores e as condições são as mesmas frequentemente descrevidas nos mitos onde a deusa/personagem se vê vulnerável, sem saída, sem poder para fazer nada sobre aquilo e forçada a vontade do agressor. Isso mesmo ela também sendo uma figura divina, poderosa e imortal. O que isso insere na psique feminina?

Quando essas meninas/mulheres se lembram de seus traumas, ou quando finalmente resolvem trazer a luz suas histórias, suas feridas, suas verdades, a sociedade as questiona em suas memórias, em sua veracidade, como se preferissem que elas tivessem deixado isso esquecido. E perguntas como "por que só falou agora" são a coisa mais absurda e mais comum que se vê. Elas visam desacreditar a vítima ainda que isso pareça inocente e seja inconsciente, é o que esse comentário faz.

Tanto uma reação quanto outra tem sua psique influenciada por algo arquetípico, uma ideia muito antiga contada de maneira romantizada geração após geração por séculos e séculos onde a mulher está sujeita a vontade do homem e a seus desejos por ela, sem limites, sem respeito, sem consenso. Onde ela deve achar comum pois é a história em todo lugar e todas lendas contam o mesmo - escutamos essas lendas desde criança e aprendemos com elas, internalizamos ideias sem racionaliza-las. É pra isso que são feitas as parábolas. A melhor forma de aprender/ensinar, onde aquele que escuta se coloca dentro de um dos personagens e o vivência na imaginação. O quão forte e poderoso são pintados esses deuses ao tomarem a força uma mulher? O que acontecia com eles?  Nada. O que acontecia com elas? Se tornam suas esposas. 

As mulheres em maioria respondem assim (Silenciadas) e quando não o fazem, quando vencem para além do trauma e seus estigmas, quando falam e exigem punição para os agressores se deparam com a reação de " camuflada indignação contra elas ao invés dos agressores". Camuflada nas perguntas como: "Porque não falou antes," nos comentários sobre "onde ela estava", "havia bebido," "estava com aquela roupa", "tem que saber se comportar". Quando leio algo assim nas redes, é como se a pessoa no fundo estivesse dizendo: " Como você se atreve a sentir algo além de vergonha de si mesma? Como se atreve a falar? Como se atreve a usar a sua vergonha para "criminalizar" o homem? Como um "se coloque no seu lugar". Mas que lugar é esse?

O Patriarcado colocou a deusa como estuprada, representando não apenas sua vulnerabilidade por ser mulher, mas subjugando-a ao masculino que neste contexto seria o mais forte, único dono da sua vontade e sexualidade. Nunca punido pelo seu ato.

Arquétipos são importantes, não podemos jogá-los no lixo, as lendas devem ser conhecidas e analisadas pois são modelos ressoando em nossa psique. Mas talvez precisamos trazer luz a questão, para conscientes trabalharmos nossa psique e nosso comportamento automático diante das circunstâncias. Ela não serve como justificativa para o comportamento masculino de tomar a força uma mulher, ou de qualquer pessoa homem ou mulher subjugar a vítima.

O reconhecimento serve para termos aberta a ideia de que talvez a história antes do patriarcado fosse outra, fosse realmente romântica, fosse consensual. E que o mito como o conhecemos tem sido uma distorção, uma ferramenta para colocar a figura feminina menor do que a masculina, e mesmo que não tenha sido assim, assim o faz. 

É intrigante que apenas as deusas virgens do olimpo não são vulneráveis, e que as não virgens que o são se casaram por estupro e não por opção. Que elas não são descritas se apoderando de seus corpos e de sua sexualidade no tempo delas. Que o prazer nessas histórias recai primeiramente sobre o homem, elas vivem histórias amorosas como Afrodite, mas todas são estupradas até mesmo a deusa do amor - embora haja uma divergência aqui e ali. Não existe uma concordância universal de que uma delas se apaixonou e casou com quem quis, quando quis e porque quis.  Isso não é algo perturbante nos mitos das deusas do olimpo por exemplo?


Alice G' @interconexão 

Imagem:escultura de  Bernini "O Rapto de Prosperina/Perséfone"


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